Pulei o carnaval do meu
calendário e fui curtir o feriado no meio da mata, mais precisamente
na reserva florestal Serra dos Cavalos, onde eu vivi grande parte da
minha adolescência, quando aos fins de semanas, festas e feriados,
fugia do caos cotidiano e das intrigas do dia a dia, para encontrar
a felicidade dentro de uma casinha de taipa que estava sempre
abarrotada de gente jovem por todos os lados. Uma delas e a mais
jovem entre todos, era a minha avó, que acolhia aquele bando de
"netos artistas" sempre com um sorriso nos lábios, um
café quentinho ou caldo de cana pronto para ser saboreado.
De início, ao subi toda
aquela estrada de chão batido, descer da moto e encostar-me rente ao
cercado que separa os homens dos gados, olhei o horizonte e vi a
minha cidade distante... Quis dizer palavras bonitas, rabiscar
um soneto ou algo que o valhar, porém, antes de construir as
sílabas de algum adjetivo para definir o belo daquela vista, ouvi
uma troça se aproximando: o bloco das visinhas briguentas:
-
Não fui eu quem foi pra sua porta bisbilhotar a sua vida, minha
filha...
-
Graças a deus eu nunca fui de fazer isso, Deus sabe bem. Ele vê bem
quem tá na porta de quem procurando confusão, bixinha safada!
-
Olhe lá como tu fala comigo, visse? senão eu faço tu engolir cada
palavra, sua crente de merda! Fica escondendo as tuas safadesas atrás
da bíblia, querendo julgar as pessoas, querendo ser a dona da
verdade, mas comigo não. Na minha vida mando eu e não quero que
rapariga nenhuma se meta nela, ainda mais uma crente fulera como tu.
-
Ah! Minha filha, quero que tua vida se dane e que tu te exploda.
-
Apois apareça na minha porta novamente pra tu vê o que vai
acontecer com tu. Tô te avisando, tu deixa a minha vida em paz, sua
catraia comedora de óstia! ... (foi saindo)
-
Deus é testemunha dos meus atos!!! (certifica-se que a outra foi
embora) Mas vê mesmo, uma inxirida dessa querendo me dá lição de
moral no meio da rua. Vem pra cá, vem. Não digo, eu nunca fui na
porta dela procurar conversa... agora ela fica ai se amostrando na
rua pra vê se alguém da razão a ela...
...E
como galinha de briga, saiu de crista erguida e resmungando alto para
ver se o som das suas palavras dava-lhe a vitória na discussão.
-
Pra teu governo, eu nunca disse um ai sobre tu, sua cachorra, tenho
mais o que fazer. Essa catraia fica ai...
Ai,
depois dessa interferência, já acompanhado por Jú e sua amiga, fui
até uma daquelas casas, cumprimentei os moradores com um boa tarde e
pedi um copo com água. Gelada ou natural? Perguntou-me a jovem mãe
que estava arrumando o cabelo da filha mais velha, enquanto o marido
bigodudo segurava as gêmeas ainda de colo. Natural por favor. Enquanto ela
buscava a água que viria fresca em um copo azul, nós elogiavamos a
beleza e astúcia da gêmeas. O Pai, contente, começou a nos falar
sobre o tempo nublado que fazia e dos carocinhos de chuva que acabará
de cair há uns minutos atrás. Uns carocinhos de chuva... A
sabedoria popular é incrivelmente, simples, humilde e sábia. Qual
árvore será que nasce desses caroços? De felicidades de bonaça,
tomara. Porque de simpatia e presteza aquela vila já transborda.
Refrescamos
nossas gargantas, agradecemos a gentileza e seguimos a estrada.
Felizes com os carocinhos d'agua que acabavamos de engolir.
Já
no caminho que nos levaria de encontro às lembraças, fomos
envolvidos pelo cheiro de mato verde e terra molhada. A cada esquina
cruzavamos com as reminiscências do passado que se tornaria
presente, bastava fechamos os olhos e tudo seria materializado na
nossa frente. Mas preferimos ficar de olhos bem abertos e projetar
naquela paraíso, todas as pessoas, fatos e estripulias que viveram
por lá. Inspirei, expiramos, respiramos fundo várias vezes... Tirei
a sandália e com os pés descaços continuei a caminhada, certo de
que quando a estrada bifurcasse, a casa de taipa ja não estaria mais
lá. Dito e feito, o mato tomara conta do que um dia foi lar. Assim,
ignoramos o caminho da direita que outrora era nosso porto seguro e
seguimos reto rumo ao pau grande para recordar algumas resenhas
vividas por lá.
Chegando
à entrada que dava acesso ao nosso querido pau, a dúvida veio, mas
logo foi embora, afinal, tudo aquilo ainda está presente nos nossos
poros. Então subimos a ladeira que estava cheia de folhas molhada
pelo chão, o que dificultava o acesso e consequentemente deixava
tudo mais divertido. Arribamos ao pau grande e olhando de perto com a
distancia do tempo não me pareceu tão grande quanto eu imaginava.
Olhamos ele das raízes à copa e por um momento nos perguntamos se
havia algum escrito nosso no seu tronco, mas logo veio a certeza que
não, pois respeitavamos muito a natureza para deixar nossa marca
nela, melhor permancer com as marcas dela em nós, nem que seja a dos
arranhões dos diversos tombos que tomamos tentando descer a ladeira
do pau grande.
Entre
quedas, rizos frouxos e históras, seguimos em direção ao açude da
mata, a nossa lagoa azul! Percorrendo todo o trajeto, passando pelas
casas que agora estão abandonadas, vimos a estátua de barro de são
francisco de assis em sua capelinha e mais a frente a placa de
PROIBIDO TOMAR BANHO, indicando o caminho exato onde foi nomeada a
Miss Murici.
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Miss Murici |
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Ju |
Explorando
a trilha entre arbusto e galhos das árvores que cresceram ao longo
de caminho, avistamos o açude cheio de gente, e no trono, digo, na
pedra pedra da Miss Murici, encontrava-se um menino fazendo poses e
logo percemos que ele queria concorrer ao Mister Murici. Porém não
tem mais como. Tudo mudou: Os matos cresceram dentro do açude e a
segunda pedra nem pode mais ser vista, com mais um punhado de tempo
tudo estará tomado pelo mato. É a natureza seguindo o seu rumo. Os
tempos são outros: Os jovens de agora são bem diferentes, estão
muito evoluidos: Bebem PITU, fumam THC e ouvem bregas com letras de
Djavan nos seus celulares. Nós, bebiamos cajuina, comiamos pão doce
e cantavamos Raul Seixas: “Eu prefiro ser essa metamorforse
ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Sobre
o que o que é o amor, sobre o que eu não sei quem sou...”
E na indecisão de partir ou ficar, permanemos na biera do açude
por um tempo, interagindo com os meninos, mas logo nos convencemos a
ir embora, pois os carocinhos de chuva ameaçavam cair sobre nossas
cabeças e podia fazer algum estrago.
No
caminho de volta cantarolamos, rimos, achamos uma tanajura, algumas
lagartas, falamos das nossas pessoas que vivem “engolindo sabos”
e desejamos comer uns pasteis ou batatas fritas murchas que vendia na
vila, ou ainda, o sagrado pão doce com cajuína rochedo. Mas o
feriado momesco obrigou o padeiro a parar com o pão e aderir ao
circo, sobrando pra nós, um biscoito treloso de chocolate, duas
cajuínas e um salgadinho pipos. Somados a constatação de que quase
nada mudou por aquelas bandas. De diferente somente a ausência e
rizadas dos tantos amigos que um dia embrenharam-se por aquela matas.
E nós, afinal, as pessoas da vila não paravam de nos olhar e
cumprimentar-nos, como se fossemos turistas. Mal sabiam eles das
crianças descabeladas e em folia que brincavam no terreiro do sítio
da tia xocha, dentro de nós.
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